segunda-feira, 22 de junho de 2015

A carta



Tal como faziam as senhoras de antigamente, ela escrevia cartas.

Não importava o que dizia, muito menos a quem o dizia. Era simplesmente o acto de redigi-las. Era vê-la sentada, posta em cena, de costas muito direitas e com cabelo entrançado, muito arranjado. Não escrevia desgrenhada - a integridade do penteado reflectia-se na inteireza do que dizia. Na sua vida, tudo era um teatro onde ela era a única espectadora e actriz.

Mas um dia, nesses requintados preparos, desatou num pranto como não acontecia há muito tempo. Nada tinha a ver com o conteúdo do que escrevia porque esse era, como sempre, muito monótono. Puro enfeite! As cartas sempre foram um mero pretexto. As linhas contadas para chegar ao fim da página; a mão que se movia desalmada desenhando lembranças e preenchendo o espaço em branco até encher o vazio; era para um qualquer destinatário – que interessava? - era vê-la alheada. E, de repente, era vê-la num pranto! E quem a visse – por sorte, ninguém a via – que dó aquela rapariga lhe daria!

O seu pranto era muito sofrido, de lhe faltar o ar. Rompiam lágrimas em esforço. Num impulso, afastava o papel de carta, inquietada, com medo que as gotas lhe acertassem. Houve vezes em que quis que lhe acertassem, mas dessa vez não. Aquele papel não era a causa das lágrimas. Houve vezes, das que quis chorar, que foi olhar-se ao espelho. Dessa vez não. Não sabia de onde lhe vinha esse ímpeto. Estranhou-se.

Talvez tenha tido, por um breve instante um momento de lucidez que lhe concedeu a consciência do tempo, do que se perdia naquelas linhas, do que esbanjava. Sentia-se sozinha com uma angústia estranha de lhe fazer faltar o ar. Há sua frente, na parede, uma imitação desbotada pelo sol das Coquelicots de Monet a lembrar-lhe muita coisa. Via lá pintada uma senhora de antigamente. Era desse pormenor que sempre tinha gostado mais no quadro, o resto era puro enfeite. No meio do campo, de um incrível prado de papoilas: a cidade personificada numa senhorita a passear com uma criança. A criança tem um ar infeliz, parece-lhe. A senhora aponta-lhe qualquer coisa, não sabe o quê.
Nesse dia, por momentos, entranhou-se nas papoilas feitas de um vermelho incrível, nas suas pétalas finas, simples e frágeis.

Tomara que as suas lágrimas fossem claras como o orvalho das papoilas..!

Daí foram mais vinte minutos para se recompor – quem diria? Que dó, aquela rapariga! Acalmou-se. Continuou a carta mais tranquila. Ajeitou a trança do cabelo. Terminou-a. Dobrou-a, colocou-a dentro do sobrescrito. Lacrou-a com cera quente. Era assim que faziam as senhoras de antigamente.


Foi largá-la no correio e, quando a viu cair pela ranhura do marco já foi incapaz de pensar no tempo que desperdiçava; já foi incapaz de pensar que, se aquela carta se perder, efectivamente, não se perdia nada. 



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