terça-feira, 12 de maio de 2015

Primeiro

partiu os dois ovos separadamente e depois juntou-os na mesma taça. Um e depois o outro. Lembrava-se da sua avó e era a voz dela na sua cabeça: aprende minha menina, se partes o ovo directamente para cima dos outros e esse ovo, por azar, está estragado, lá se vão todos. Então, apesar de ter sempre a terrível tentação de os partir de olhos fechados, com um golpe certeiro, de despejá-los a todos para a frigideira quente, abreviando caminho e confiando cegamente no destino, lá se controlava, sisuda. Lavava mais loiça, mas era prudente.

Deitou-lhes sal e um pingo de leite para ficarem macios. Enquanto os batia energicamente, olhou-se, de soslaio, num reflexo. A imagem devolvia-lhe a estranha sensação que sentia ao usar o avental. Sempre que cozinhava gostava de vesti-lo, não pelo medo de se enodoar, mas porque fazia parte do cenário. Porém, a cena há muito que não estava completa: aquela mulher do reflexo sentia um frio gélido nas costas. Fazia-lhe falta que o seu homem chegasse nessa hora, que a envolvesse, afagasse os cabelos e lhe acalmasse a mão enérgica dizendo-lhe, carinhosamente, quer que seja eu a fazer isso? E ela responderia que não. Era ela a bater esses ovos para ele, num acto de absoluta gratuitidade, e isso levou-a a pensar, não sabia bem porquê, que muitas mulheres, muito antes de amarem os seus homens, amam-se a si próprias. Que triste. Amam tudo o que idealizaram vir a ser um dia, onde o fundamental é sentirem-se tão queridas e desejadas, como indispensáveis. Amam o cabelo pintado de loiro com madeixas perfeitas, a manicure, as meias de vidro, o casquinho de caxemira, o sorriso estático; as revistas de decoração e a decoração da sala onde o marido está sentado a fumar cachimbo, quase que amam tanto o cheiro do cachimbo como o cheiro do bolo acabado de sair do forno; o jantar a horas certas, a lista das compras; as férias de Natal na aldeia, as férias do verão na praia e a merendeira que o homem carrega feliz pelo areal com o farnel do dia. Elas bem disfarçam, mas a verdade é que, condensando tudo isto, amam-se a si próprias de avental, sozinhas, no reflexo. Que triste. Os aventais de cozinha só tapam as mulheres à frente, porque atrás espera-se um homem que as envolva.

Pôs a mesa. Um prato e os talheres pousados num individual; um guardanapo e um copo; em cima do guardanapo, uma flor. Deixou-lhe a omelete no microondas já com a tampa de plástico por cima para não salpicar (ele esquecia-se sempre da tampa de plástico).

Antes de sair da cozinha, colou um post-it amarelo na porta do microondas onde ia escrever o mesmo de sempre: querido, tem aqui dentro o jantar feito, é só aquecer. Mas uma voz  surgiu na sua cabeça, uma voz insinuante que a fez escrever: se a solidão fosse uma casca de ovo que tu pudesses partir, o meu coração batia mais livre. No instante seguinte, ao pousar a caneta, sentiu-se traída. Amachucou o pequeno papel amarelo e atirou-o para o lixo. Podia ter muitos defeitos, mas sempre fora uma mulher prudente.


Por isso e porque já era tarde, meteu-se na cama e, em poucos minutos, adormeceu.



2 comentários:

Unknown disse...

Oh kikinha, tão bonito!!!!!!
Adoro adoro adoro!!!!

kika disse...

:)